O mito de São Jorge sempre fascinou Glória Perez. Por isso, ela escolheu o tema para estar em sua novela, "Salve Jorge", que estreou na segunda-feira (22), às 21h, na TV Globo. Usando um anel e uma pulseira com a imagem do santo, é a ele que a autora clama nos momentos difíceis, para ajudá-la a seguir em frente. “Gosto do mito do guerreiro, que é aquela força interior que todos temos de acordar dentro de nós em alguns momentos da vida para superar as dificuldades do caminho”, diz a novelista.
Dificuldades para superar não faltaram na vida dessa acreana de 64 anos. Em dezembro, fará 20 anos que sua filha, a atriz Daniella Perez, foi assassinada aos 22 anos, a tesouradas, pelo colega de elenco da novela "De Corpo e Alma", Guilherme de Pádua, e a mulher dele na época, Paula Thomaz. Os dois já cumpriram pena e vivem em liberdade. “São 20 anos, mas é uma dor que não passa nunca”, afirma Glória, que há dez anos perdeu o filho Rafael. Ele tinha uma síndrome muito rara desde que nasceu, cujo diagnóstico não chegou a ser definido e, aos 25 anos, não resistiu a uma infecção abdominal.
Mãe de Rodrigo, de 40 anos, Glória nunca se rendeu. Parar de trabalhar, então, nem pensar. Dois dias depois do assassinato da filha, voltou a escrever "De Corpo e Alma" e foi à luta, iniciando uma campanha que transformou o homicídio em crime hediondo. Em 2010, enquanto fazia "Caminho das Índias", descobriu que tinha um câncer na tireoide e, mais uma vez, continuou à frente da trama. “Colocava o computador no colo e escrevia na cadeira da quimioterapia”, conta a única novelista da Globo que prefere não ter colaboradores. “Não sei dividir fantasia”, explica. Até o susto que levou com a doença a fortaleceu: “Temos uma sensação de eternidade e lembrar de vez em quando que temos prazo de validade é bom”.
QUEM: Como surgiu a ideia da novela?
GLÓRIA PEREZ: Desde a pacificação do Complexo do Alemão, me impressionou muito o resgate dessa população, que durante anos viveu isolada. Então, tive o link com a cavalaria, que é quem ocupa o Alemão. E a cavalaria remete a São Jorge. Não é o aspecto religioso, gosto do mito do guerreiro, que é aquela força interior que todos temos de acordar dentro de nós em alguns momentos da vida para superar as dificuldades do caminho.
QUEM: E a Turquia?
GP: Sempre faço campanha e queria falar sobre o tráfico internacional de pessoas. É importante não ligar a Turquia a esse tráfico, como se fosse uma característica de lá. Eu precisava de um país lá fora, para onde essas pessoas fossem mandadas. E aí São Jorge fez o link com a Turquia (a Capadócia, na Turquia, é o local de origem do mito).
QUEM: Nesses casos, a maioria das mulheres sai do país iludida?
GP: Algumas vão sabendo que é para prostituição, outras acham que vão ter um emprego de balconista ou coisa assim. Não estamos fazendo uma campanha contra a prostituição, querer ir e se prostituir é uma escolha. A campanha é contra a escravidão. Porque mesmo que vá para se prostituir, a pessoa não vai para ser escrava, ficar endividada, trancada, com o passaporte retido.
QUEM: Qual o seu objetivo?
GP: Esclarecimento. Na novela, tem divulgação de telefones para denúncia, pedido de ajuda. Pouca gente sabe que a Polícia Federal tem um telefone para o qual uma brasileira traficada pode ligar e pedir socorro.
QUEM: Assistiu a Avenida Brasil? Sentiu muita responsabilidade por substituir esse fenômeno?
GP: Assisti ao primeiro capítulo, alguns pelo meio e o último. Acompanhar mesmo não dá, novela é uma coisa viciante. E não há medo nenhum de substituir uma novela que esteja fazendo sucesso porque você pega o Ibope alto.
QUEM: Usa muito o Twitter, gosta dessa ferramenta?
GP: Adoro. Sempre fui ligada na internet, tanto que fui a primeira a falar disso, em Explode Coração (1995). Ficava impressionada com como as pessoas se apaixonavam sem se ver. Não entendia. Pra mim, não funciona.
QUEM: Agora entende?
GP: Não, continuo sem entender (risos). Sou antiga. Mas acho fascinante essa coisa de a pessoa se criar na internet, criar um avatar, uma representação de si, e viver naquele mundo. Também me espantam meninas de 15 anos querendo ganhar de presente um silicone. E, com 20 anos, já estão injetando botox no rosto inteiro. Ou seja, o se criar não está acontecendo só no virtual.
QUEM: Por que só escreve sozinha?
GP: Não sei dividir fantasia. Admiro quem escreve com colaborador, acho mais trabalhoso. Comecei com a Janete (Clair, falecida em 1983), que também escrevia sozinha, e escreveu comigo porque estava doente. Se você adoece, chama alguém.
QUEM: Você passou por isso, ao descobrir um câncer na tireoide, em Caminho das Índias.
GP: E pedi socorro, coloquei meus amigos de prontidão. O Carlos Lombardi escreveu umas cenas para mim. A Elizabeth Jhin também.
QUEM: Teve medo de morrer?
GP: Para minha geração, o câncer era uma condenação e, num primeiro momento, quando soube que era maligno, eu pensei assim. Durou pouco essa sensação de estar condenada. Fui ao médico perguntar quanto tempo eu tinha de vida, saber se poderia continuar a escrever a novela. Aí veio a boa notícia. Eu tinha possibilidade de cura. Era um linfoma na tireoide, tive sorte, pois tirei a tireoide e fiz a químio. Sou uma pessoa positiva, falei para o médico: se tem uma parte que depende de mim, vou fazer.
QUEM: Nunca fraquejou?
GP: Não. Colocava o computador no colo e escrevia na cadeira da quimioterapia.
QUEM: Está totalmente recuperada?
GP: Graças a Deus, estou há quatro anos bem.
QUEM: O câncer virou um fantasma na sua vida?
GP: Não. Mas temos uma sensação de eternidade, e lembrar de vez em quando que temos prazo de validade é bom. Temos que aproveitar mais a vida, ter a medida de que não se vai estar para sempre aqui, que esse dia não se repete, os momentos não se repetem.
QUEM: Em dezembro, fará 20 anos da morte da sua filha, Daniella Perez.
GP: É uma dor contínua. São 20 anos, mas é uma dor que não passa nunca dentro de você. Um dia eterno, que não passa.
QUEM: Também perdeu outro filho, o Rafael.
GP: Sim, mas as circunstâncias foram outras. É impossível viver à parte disso, vivo com isso, com essa dor.
QUEM: Você virou uma referência para as mães que sofrem com a tragédia de perder um filho.
GP: Eu tive espírito de luta e muitas pessoas se espelharam nisso para levar suas lutas adiante. Lutei muito para botar aquelas pessoas na cadeia, para conseguir aquela modificação na lei e colocar o homicídio qualificado na lista dos crimes hediondos. Se não fosse essa lei, o casal Nardoni (Alexandre e Ana Carolina Jatobá, acusados de jogar a filha dele, Isabela Nardoni, pela janela) já teria saído da cadeia há muito tempo.
QUEM: E fez isso mesmo sabendo que o resultado não seria retroativo ao caso da sua filha?
GP: Lógico, sabia que não serviria para mim.
QUEM: Você é uma mulher solitária?
GP: Não. Tenho muitos amigos, não tenho solidão nenhuma. Estou solteira, mas gosto de viajar, sou madrinha da gafieira, danço muito.
QUEM: Depois do que passou, ficou mais complacente com a vida ou mais endurecida?
GP: Fiquei mais complacente com o que merece complacência e mais dura com o que não merece. Eu enxergo a vida sem fantasia, o que é muito bom. Você conhece o melhor e o pior do ser humano. Tem gente que prefere viver iludido, achando que no mundo todos são bonzinhos. Eu não tenho essas ilusões.